Lisboa Barroca:

Poder e Representação

­­Susana Varela Flor
IHA – NOVA/FCSH

Dirck Stoop, Entrada pública do Embaixador Francisco de Melo e Torres no Terreiro do Paço em Lisboa, assinada e datada ‘Londres 1662’. Óleo sobre tela, 123 x 172,5 cm. Museu de Lisboa – Palácio Pimenta.

Esta é a história de uma Infanta que se tornou Rainha. Este é o cenário onde podemos ver a entrada pública de alguém importante. Esta é a represen­tação de uma praça real num dia agitado no século XVII.

Executada pelo pintor holandês Dirck Stoop em 1662, esta tela idealiza um momento da vida quotidiana de Lisboa, na época em que a Coroa portuguesa ultimava os preparativos das festividades para celebrar o enlace da Infanta D. Catarina de Bragança, filha da Rainha regente D. Luísa de Gusmão, com o rei inglês Carlos II da dinastia Stuart. Este casamento fortaleceu os laços diplomáticos entre a corte portuguesa e a inglesa. Coincidiu também com o período conturbado de guerra com Espanha, desde 1640, depois da recuperação da soberania: os tempos da Restauração.

Autoria

Dirck Stoop (c. 1618–1686)

Joost Cornelisz Droochsloot, Vista de Utreque, 1650-55. Utrecht, Centraal Museum.

Dirck Willemsz van der Stoop, também conhecido como Dirck Stoop, nasceu em Utreque por volta de 1618. 

Ali viveu com a família, incluindo o pai, Willem Jansz Stoop (d. 1646), um importante pintor de vitrais, e dois irmãos também eles pintores, Maerten e Jan. Dirck Stoop é também referido na documentação como um pintor de cavalos, aludindo à sua principal actividade. O nome de Stoop está registado em 1638 na Guilda de pintores de Utreque. Em 1647, depois de uma viagem a Itália, Stoop regressou a Utreque. A década de 50 é o período menos conhecido da sua carreira. No entanto, alguns autores pensam que Stoop terá trabalhado em estreita parceria com outros pintores holandeses como Jacques Muller (d. 1673), Willem Ormea (1611–1673) e Cornelis Willaerts (act. 1622–1666).

Dirck Stoop, Ruins, c. 1640-47?. Private Colection.

Dirck Stoop esteve em Itália durante algum tempo, como se pode verificar pela inserção amiúde de motivos clássicos e de ruínas de arquitectura como arcos de volta perfeita, colunas e entablamentos nas suas pinturas.

No início dos anos 40, a sua estada em Itália foi contemporânea da parceria que estabeleceu então com o pintor holandês Jan Baptist Weenix (1621 – c. 1663). A historiografia regista uma assinatura conjunta numa pintura intitulada “Vista de Tivoli”, infelizmente não localizada. Podemos imaginar como poderia ser essa pintura ao admirarmos outras de Stoop que ainda existem.

Dirck Stoop, Charles II’s cavalcade through the city of London, 1661. Museum of London.

A ligação entre Stoop e o reino de Portugal é ainda difícil de determinar com precisão. A chegada de Stoop pode ser explicada por contactos estabelecidos em Londres, para onde terá viajado nos finais dos anos 50 em busca de novas oportunidade de trabalho. 

Se esta estada em Inglaterra tivesso ocorrido, Stoop pertenceria à lista de pintores holandeses que atravessaram o Mar do Norte à época, como os casos de Peter Lely (1618–1680), Pieter Borselaer (c. 1664–1687) ou Jacob Huysmans (c. 1633–1696), em particular após a Restauração de Carlos II. A imagem que representa a entrada triunfal do Rei pelas ruas de Londres em 1661 parece comprovar essa estada prévia. Uma vez em Londres, Dirck Stoop terá conhecido o Embaixador português Francisco de Mello e Torres, conhecido do General at Sea (Admiral) Edward Montagu – Earl of Sandwich, mais tarde Embaixador Extraordinário de Carlos II a Portugal – que patrocinou obras de Stoop.

A 23 de Junho de 1661, Francisco de Mello e Torres (c. 1610-1667) assinou em Londres o Tratado de Whitehall em nome da Coroa portuguesa. A assinatura deste Tratado de paz, comércio e aliança significou um ponto de viragem no papel desempenhado por Portugal na Europa, depois de se ter separado de Espanha.

Com efeito, o casamento de Catarina de Bragança e Carlos II foi considerado um grande feito diplomático e uma vitória da Casa de Bragança no período pós-Restauração. Em Setembro de 1661, Dirck Stoop estava em Lisboa, a acompanhar o Embaixador Extraordinário inglês Edward Montagu, que então tinha vindo a Portugal. A missão de Stoop era a de registar os acontecimentos relacionados com as festas e cerimónias de casamento, como podemos observar...

Dirck Stoop, “Touros Reays nas festas do casamento da Raynha da Gran Bretanha em Lixboa 1661”, Museu de Lisboa – Palácio Pimenta.

Stoop pintou a tela, tema desta apresentação, e assinou-a e datou-a de “Londres 1662”. A pintura poderá ter sido uma encomenda do Embaixador português Francisco de Mello e Torres, celebrando a sua nomeação como Marquês de Sande.

O trabalho de pintura e gravura de Dirck Stoop e a sua disseminação permitiram a promoção da imagem de Lisboa na Europa. Ao mesmo tempo, estabeleceram a base iconográfica da representação da cidade. Esta tela parece ser um excelente exemplo dessa promoção.

“Terreiro do Paço”

Uma praça como um palco

Desde o século XVI, a zona fronteira ao Paço da Ribeira tornou-se o principal centro da vida urbana, um verdadeiro palco pela sua intensa actividade mercantil e também pela representação dos principais eventos diplomáticos e políticos do reino.

O início desta tradição recua pelo menos até ao reinado de D. Manuel I e foi continuadamente perpetuada nos séculos posteriores. A importância desta praça residia não só na presença imponente do palácio real, mas também de outros edifícios que o rodeavam, incluindo a Casa da Índia (o coração da actividade mercantil no contexto do comércio português no Atlântico e no Índico) e também a Alfândega, que geria as entradas e saídas das mercadorias do reino.

João Nunes Tinoco, Cidade de Lisboa, c. 1650. Mapa baseado num outro datável do final do século XVI ou início do século XVII.
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Bairro Alto

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Terreiro do Paço

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Bairro medieval

O mapa desenhado pelo arquitecto João Nunes Tinoco (c. 1650) mostra-nos bem este espaço alargado, defronte do rio. Podem ver-se também, à direita, parte do bairro medieval de ruas estreitas e sinuosas, à esquerda o traçado ortogonal do Bairro Alto, de ruas e quarteirões bem definidos.

Autor desconhecido, Entrada triunfal de uma comitiva estrangeira no Terreiro do Paço, segundo quartel do séc. XVII, Museu de Lisboa – Palácio Pimenta.

A maior parte das representações desta grande praça, chamada Terreiro do Paço, mostra a versatilidade deste enorme espaço fechado, entre o forte de S. João, o palácio e as antigas muralhas medievais de Lisboa.

Toda a área permitia com facilidade a montagem e desmontagem de arquitecturas efémeras como arcadas e arcos triunfais próprias para os eventos organizados.

Isto é particularmente visível em pinturas da relevância iconográfica que estamos agora a observar. Esta é a representação da cerimónio do juramento de D. João IV, depois da proclamação da independência em 1640, após 60 anos de domínio espanhol. Quando observamos com mais pormenor, verificamos que foi a fachada nascente a utilizada para a construção do estrado, onde a cerimónia teve lugar. O colorido intenso de carmesim e ouro dos tecidos emprestou à cena um enorme sentido de magnificência do evento. Além disso, o desfile pleno de pompa e circunstância desenvolve-se mais à direita, onde vemos o rei a cavalo, sob um pálio branco, rodeado por vários elementos do clero e da nobreza.

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Juramento real

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Desfile régio

Outro exemplo da enorme versatilidade do Terreiro do Paço é a gravura seguinte.

A praça está profusamente decorada e cheia de gente. Veem-se exemplos de arquitecturas efémeras, plenas de citações clássicas, decoradas com tecidos e panos, seguindo o gosto em voga nas artes.

Dirk Stoop, Desfile no dia da partida para Inglaterra, 1662. Lisboa, Museu da Cidade – Palácio Pimenta.

Esta gravura mostra-nos as festividades que tiveram lugar no dia da celebração do casamento de Catarina de Bragança com Carlos II. Tanto o arco triunfal do centro da praça como os adossados à antiga muralha de Lisboa, além do desfile de carruagens ricamente ornamentadas e acompanhadas pelo cortejo da guarda real, sublinham, uma vez mais, a utilidade deste enorme espaço e o seu potencial cénico.

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Artista desconhecido, Entrada da Embaixada do Núncio Giorgio Cornaro em Lisboa em 1693, 1693-94. Lisbon, Museu Nacional dos Coches.

Mesmo em épocas posteriores à pintura de Stoop, a utilização da grande praça real foi mantida, como um espaço privilegiado de celebração, como se pode observar nesta extraordinária pintura. Esta mostra-nos a entrada do Núncio apostólico no Terreiro do Paço em 1693, Monsenhor Giorgio Cornaro, momentos antes da primeira audiência pública com o rei D. Pedro II. Vale a pena notar, por exemplo, o desfile das carruagens no lado direito da pintura, a longa arcaria efémera construída junto dos edifícios que receberam os assentos das várias instituições e autoridades locais e a exibição de panos e colchas nas janelas das casas voltadas à praça.

Toda esta atmosfera magnificente não era desconhecida da população de Lisboa que se acostumou a ir ao Terreiro do Paço para assistir a este tipo de eventos de pompa e esplendor.

Observemos de novo a pintura de Dirck Stoop. Tirando partido da grande mole arquitectónica do Paço da Ribeira, o pintor serviu-se dela para emoludrar o Terreiro do Paço e mostra-nos vários episódios que se justificam no contexto do casamento acordado entre as casas reais de Portugal e Inglaterra em 1662.

Arquitectura

O potencial iconográfico desta pintura e a visão apurada do pintor permitem-nos apreciar a sua riqueza narrativa que nos ajuda a explorar o seu contexto. Movimento, som, vida quotidiana e cenografia parecem convidar-nos a entrar na pintura e participar também nela.

Comecemos pela arquitectura representada que ocupa parte significativa em termos visuais. Embora a cena que vemos nunca tenha exactamente ocorrido, o pintor tentou simulá-la, captando uma espécie de instantes fotográficos, como diríamos hoje. No entanto, de modo a conferir autenticidade à pintura, Dirck Stoop desenhou cuidadosamente o enorme palácio com o seu torreão imponente; uma galeria tranversal que estabelecia a ligação entre o torreão (ou forte) e a sala vaga (também chamada Sala dos Tudescos); e finalmente, a fechar a representação, a galeria das Damas. Outros edifícios mais distantes são identificáveis.

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Forte do Paço da Ribeira

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Galeria do Forte

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Sala Vaga

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Galeria das Damas

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Palácio dos Condes da Ribeira Grande

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Convento de S. Francisco da Cidade

Episódios principais

Um das estratégias mais interessantes usada por Stoop nesta pintura foi a de condensar vários episódios num só cenário. Nenhum deles ocorreu em simultâneo, mas apenas individualmente.

No entanto, quando olhamos em geral, consideramos que tudo parece resultar num todo contínuo. Cada um dos pequenos conjuntos de personagens tem uma função e conta-nos uma história relacionada com o tema geral da pintura: o casamento de D. Catarina de Bragança.

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Embarque do açúcar

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Catarina de Bragança, a Mãe D. Luísa de Gusmão e uma Freira

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Entrada da comitiva de Francisco de Mello e Torres

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Parada militar

Vida quotidiana

A riqueza do conteúdo iconográfico de toda a cena é tal que podemos ainda identificar outros pequenos episódios no palco que é o grande Terreiro do Paço, embora estes não tenham ligação directa com o tema principal da pintura.

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Mulher vendedora de frutas

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Barraca de venda de mercadorias

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Muralha do Forte

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Devoção a Nossa Senhora de Guadalupe

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Chafariz de Apolo

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Grupos sociais ricos e poderosos

Retratos

Além dos retratos de D. Catarina de Bragança, da rainha D. Luísa de Gusmão e de uma freira no meio-plano da pintura, notam-se pela proeminência dada aos três cavaleiros na ribalta que estamos perante três outros retratos.

São seguramente pessoas importantes e prestigiadas na corte do tempo. Infelizmente, não conseguimos ainda identificá-las, mas o realismo das suas expressões e o modo como se apresentam diante do observador não nos dão margem para dúvidas.

Fernando Castelo Branco, Lisboa Seiscentista - Livros Horizonte, Lisboa, 1990.

Carlos Caetano, A Ribeira de Lisboa na Época da Expansão Portuguesa (Séculos XV a XVIII) - Pandora, Lisboa, 2004.

Júlio de Castilho, A Ribeira de Lisboa. Descripção Histórica da Margem do Tejo desde a Madre-de-Deus até Santos-o-Velho - Imprensa Nacional, Lisboa, 1893.

Miguel Figueira de Faria (coord.), Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio – Imprensa Nacional Casa da Moeda / UAL, Lisboa, 2012.

Susana Varela Flor, Aurum Reginae orQueen-Gold:  a iconografia de D. Catarina de Bragança entre Portugal e Inglaterra de Seiscentos - Fundação da Casa de Bragança, Lisboa, 2012.

Susana Varela Flor and Pedro Flor, Retratos do Paço Ducal de Vila Viçosa, col. Muitas Cousas, n.º 6 – Fundação da Casa de Bragança, Lisboa, 2018.

Jorge Penim Freitas, Guerra da Restauração – Blog de história militar dedicado à Guerra da Restauração ou da Aclamação. Available in:

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Rafael Moreira, “O Torreão do Paço da Ribeira” in: Mundo da Arte, 14 (1983) - Imprensa de Coimbra, Coimbra, 43-48.

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1) Lisboa, Museu de Lisboa – Palácio Pimenta (inv. MC.PIN 261)

2) Utrecht, Centraal Museum (inv. 2298) - ©CC-PD-Mark

3) Image available in: https://www.christies.com/lotfinder/Lot/dirck-stoop-utrecht-c-1618-c-1686-5101494-details.aspx ©Christies

4) London, British Museum, The Coronation procession of Charles II in four rows (numbered 17-20); beginning with "Sergants at Armes" and ending with "Captain of the Guard"; being the last of four plates of this event taken from John Ogilby's 'The Entertainment of ... Charles II', 1662 Etching, inv. 163613001, ©The Trustees of the British Museum, (CC BY-NC-SA 4.0)

5) Lisboa, Museu de Lisboa – Palácio Pimenta (inv. MC.GRA 503)

6) Lisboa, Museu de Lisboa – Palácio Pimenta (inv. MC.DES 1084)

7) Lisboa, Museu de Lisboa – Palácio Pimenta (inv. MC.PIN 262)

8) Vila Viçosa, Paço Ducal de Vila Viçosa (inv. 4815)

9) Lisboa, Museu de Lisboa – Palácio Pimenta (inv. MC.GRA 1074)

10) Lisboa, Museu Nacional dos Coches – image available in: artsandculture.google.com/asset/JQHiTENYrWsC4A ©CC-PD-Mark

11) Lisboa, Museu de Lisboa – Palácio Pimenta (inv. MC.GRA 1885)

Créditos

Título: Lisboa Barroca: Poder e Representação

Autora: Susana Varela Flor (Universidade Nova de Lisboa, Instituto de História da Arte – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas).

Web Design: Kunsthistorisches Museum Wien – Visual Media

Tradução Inglês / Leitura de Provas: Susana Varela Flor / Erin Coghill

Financiamento: A investigação levada a cabo para este digitorial foi financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia-FCT, como parte do seu programa Norma Transitória [DL 57/2016/CP1453/CT0032].

Este página foi realizada através de um financiamento do Museu de Lisboa – Palácio Pimenta / EGEAC